24/04/22
blogfolhadosertao.com.br
Por Ricardo Leitão*
Questionado por jornalistas sobre gravações de áudios inéditos de sessões do Superior Tribunal Militar (STM) que apontam denúncias de tortura durante o período da ditadura (1964-1985), o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, deu uma risada e comentou: “Apurar o que, os caras já morreram”. Em seguida, debochou: “Vai trazer os caras de volta dos túmulos? Isso já passou”.
As gravações, que cobrem o período de 1975 a 1985, somando mais de 10 mil horas, foram analisadas pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e pelo advogado e pesquisador Fernando Fernandes. Em um dos áudios, de junho de 1977, o general Rodrigo Octávio, ministro do tribunal militar, relata o aborto sofrido pela presa política Nádia Lúcia do Nascimento, aos três meses de gravidez, “após castigos físicos”.
Mourão tem um histórico de declarações em defesa da ditadura militar. Em 1º de março de 2018, na cerimônia de passagem para a reserva, ele chamou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado por sequestro e tortura, de “herói”. Ustra também recebeu homenagem pública de Jair Bolsonaro, que a ele dedicou seu voto, no plenário da Câmara de Deputados, a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff – presa política torturada pela ditadura.
Natural portanto, para os bolsonaristas, que em 31 de março passado – dia da deflagração do Golpe de 1964 – o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica divulgassem nota oficial afirmando que a derrubada do governo democraticamente eleito de João Goulart, pelas forças armadas, garantiu a “democracia” fardada imposta ao País.
Também natural o comentário cruel do deputado Eduardo Bolsonaro, filho de Sua Excelência, sobre a tortura sofrida pela jornalista Míriam Leitão, aos 19 anos: “Tenho pena é da cobra”. Eduardo, líder da extrema direita bolsonarista, se referia a uma das mais sórdidas sevícias a que foi submetida a jornalista em um quartel do Exército, no Espírito Santo: ser trancada em uma cela totalmente escura, despida, com uma cobra sucuri. Engraçado, general Mourão?
Os números da repressão política no Brasil são pouco precisos, uma vez que a ditadura nunca reconheceu esses episódios. A Justiça Militar recebeu 6.016 denúncias de torturas. Estimativas posteriores apontam para 20 mil casos. Em 2021, a Comissão Nacional da Verdade listou 191 mortos e 210 desaparecidos. Outros 33 desaparecidos tiveram seus corpos localizados posteriormente. Segundo o relatório “Tortura Nunca Mais”, pelo menos 1.918 prisioneiros políticos atestaram ter sido torturados entre 1964 e 1979. O documento descreve 283 formas de torturas utilizadas na época pelos órgãos de repressão.
Algumas delas foram ensinadas a policiais brasileiros na Escola das Américas, localizada nos Estados Unidos, e depois identificadas por historiadores e testemunhas como um centro de difusão de técnicas de tortura. O americano Dan Mitrione, um dos “professores” da escola, foi transferido para a Embaixada dos Estados Unidos, em Brasília, e passou a treinar brasileiros em técnicas “científicas” para arrancar informações. Mitrione se utilizava de mendigos para demonstrar seus conhecimentos.
Um de seus seguidores foi Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo. Acusado de torturar presos políticos até a morte, Fleury operou em estreita cooperação com o coronel Ustra – o “herói” do presidente Bolsonaro e do vice-presidente Mourão –, na época chefe da caça aos militantes da esquerda em São Paulo. A Escola das Américas, depois rotulada “Escola de Assassinos”, foi fechada pelo governo dos Estados Unidos, após o fim das ditaduras na América Central e do Sul.
A tortura, no entanto, nunca deixou de ser uma demonstração de exercício do poder sem qualquer limite para a extrema direita no Brasil. Aterroriza, provoca submissão, pânico, dor extrema, arranca “confissões” de inocentes e mostra que não são nada, diante da brutalidade e da desumanidade do torturador.
Tortura-se ainda hoje nas delegacias policiais; nos campos lavrados por trabalhadores em regime de escravidão; em favelas comandadas por traficantes e milicianos. Não há heróis na miséria dessa tragédia social, alimentada pela injustiça e pela desesperança. Existem apenas sobreviventes.
Os heróis do vice-presidente e do presidente são outros e venceram suas grandes batalhas torturando presos políticos nos porões da ditadura. Não é uma graça, general?
- Ricardo Leitão é Jornalista