Há 60 anos: O Golpe Militar de 31 de março de 1964 e o início da ditadura no Brasil

31/03/24

Por Daniel Neves

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1- O Golpe Militar de 1964 foi resultado de uma conspiração realizada por grupos conservadores da sociedade brasileira e deu início ao período da Ditadura Militar no Brasil.

2- O governador de Pernambuco, Miguel Arraes de Alencar foi deposto e preso, não aceitando renunciar ao mandato que lhe foi conferido pelo povo

 

Policiais perseguem estudante no dia que ficou conhecido como "sexta-feira sangrenta", no Rio de Janeiro [1]
Policiais perseguem estudante no dia que ficou conhecido como “sexta-feira sangrenta”, no Rio de Janeiro [1]

O Golpe Civil-Militar de 1964 é o nome que se dá à articulação golpista que, entre 31 de março e 9 de abril de 1964, realizou a tomada de poder, subvertendo a ordem existente no país e dando início à Ditadura Militar, regime ditatorial que se estendeu no Brasil de 1964 até 1985 e foi caracterizado por censurasequestros e execuções cometidas por agentes do governo brasileiro. Durante o golpe realizado em 1964, o presidente então empossado, João Goulart, foi destituído de seu cargo.

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Contexto histórico

golpe de 1964 foi resultado de uma articulação política golpista realizada por civis e militares na passagem de 1961 para 1962. É importante esclarecer que, apesar dessa conspiração ter efetivamente surgido em 1961, a Quarta República Brasileira foi marcada por diferentes tentativas de subversão da ordem realizadas pela UDN.

O caminho que levou ao golpe de 1964 começou a ser trilhado com a posse de João Goulart (Jango) em 1961. Criaram-se diversos obstáculos à posse de Jango como presidente, que só assumiu porque foi implantado às pressas um sistema parlamentarista que reduzia os poderes do Executivo.

Por causa da estreita relação de Jango com o sindicalismo brasileiro, os grupos conservadores da sociedade viram o político gaúcho com extrema desconfiança e frequentemente o acusavam de ser comunista pelos conservadores. A crise política do governo de Jango fortaleceu-se também por causa de reformas que foram defendidas pelo governo – as Reformas de Base.

A posse de Jango não era um incômodo apenas para os grupos conservadores do Brasil, mas incomodava também o governo dos Estados Unidos, que consideravam João Goulart um político “muito à esquerda” do que se esperava de um presidente brasileiro.

Duas ações do governo de Jango aumentaram essa oposição do governo americano, que passou a financiar as movimentações golpistas no Brasil. A primeira ação foi a Lei de Remessas de Lucros de 1962, que impedia multinacionais de enviar mais do que 10% de seus lucros para o exterior. A segunda medida que desagradava aos americanos era a continuidade da política externa independente do Brasil e praticada pelo Ministro das Relações Exteriores, San Tiago Dantas.

Com isso, a partir de 1962, os Estados Unidos passaram a financiar ativamente grupos e políticos conservadores no Brasil. Dois grupos que recebiam amplo financiamento americano ficaram conhecidos como “complexo Ipes-Ibad”, sendo Ipes o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, e o Ibad, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática.

O Ibad, inclusive, foi alvo de uma CPI em 1962 porque recebeu milhões do governo americano para financiar a campanha de mais de 800 políticos durante as eleições daquele ano. Os políticos apoiados eram políticos conservadores, e o objetivo era criar uma frente parlamentar que barrasse o governo de João Goulart de todas as formas. Segundo a legislação brasileira da época, esse tipo de financiamento era ilegal.

Já o Ipes era um grupo que atuou decisivamente no sucesso do golpe civil-militar em 1964. Em sua fachada pública, o Ipes atuava como instituição que fazia produção intelectual de livros e documentários, mas a atuação secreta do Ipes nos quadros políticos do Brasil é resumida pelas historiadoras Lilia Schwarcz e Heloísa Starling:

[…] o Ipes agiu contra Goulart com uma política de duas vertentes. A primeira consistiu na preparação e execução de um bem orquestrado esforço de desestabilização do governo que incluía custear uma campanha de propaganda anticomunista, bancar manifestações públicas antigovernistas e escorar, inclusive no âmbito financeiro, grupos e associações de oposição ou de extrema-direita1.

desestabilização do governo de Jango também foi, em grande parte, realizada pela imprensa brasileira. Os jornais de grande circulação do Brasil uniram-se em uma articulação golpista que recebeu o irônico nome de Rede da Democracia. A mobilização pelo golpismo da imprensa partia da seguinte leitura da realidade política brasileira:

[…] os jornais passaram a ser peças-chave na conspiração a partir do final de 1963. Tradicionalmente ligada à linha liberal-conservadora, a grande imprensa brasileira consolidou a leitura de que o país caminhava para o comunismo e a subversão no coração do poder, ou seja, a própria presidência da República2.

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Radicalização política

A conspiração em curso contra o governo de João Goulart foi resultado do temor de grupos conservadores com a ascensão dos movimentos sociais, como os movimentos de camponeses, operários e estudantes. A sociedade brasileira estava rachada ideologicamente entre direita e esquerda, e um dos grandes alvos de debate foram as Reformas de Base.

As Reformas de Base foram um programa estipulado pelo governo Jango que criou uma agenda e promoveu um debate a respeito de entraves estruturais da sociedade brasileira. Elas estipulavam reforma agrária, tributária, eleitoral, bancária, urbana e educacional. Entre todas essas propostas, a que teve discussão mais avançada nos quadros políticos brasileiros foi a agrária.

reforma agrária dominou o debate político nacional de março até agosto de 1963 e dividiu esquerda e direita. Formaram-se grupos de trabalhadores camponeses que começaram a invadir propriedades rurais e a pressionar o governo pela realização da reforma – mesmo que a força. Os proprietários, por sua vez, eram contrários à reforma agrária.

A proposta defendida pela esquerda estipulava que terras com mais de 500 hectares que fossem improdutivas seriam alvo da reforma e que a desapropriação dessas terras seria realizada mediante indenização de títulos da dívida pública a ser resgatados em longo prazo. Já a direita até aceitava negociar, mas defendia que a reforma agrária deveria acontecer de acordo com os mecanismos constitucionais, ou seja, mediante pagamento indenizatório em dinheiro e à vista conforme valor de mercado.

Isso fez o debate emperrar, e a não realização da reforma agrária agravou a situação. Invasões de propriedades espalharam-se por diversas partes do Brasil. Além disso, por causa do desgaste gerado pelo debate, a base parlamentar de Jango vinculada ao PSD bandeou-se para a oposição udenista.

As dificuldades do governo de Jango aumentavam com a intransigência de muitos grupos da esquerda que queriam realizar as Reformas de Base a todo custo. Essa ala tinha como grande nome Leonel Brizola – cunhado de João Goulart, havia sido governador do Rio Grande do Sul e, a partir de 1963, tornou-se Deputado Federal pela Guanabara.

Essa atuação radicalizada da esquerda na defesa das Reformas de Base foi explorada pelos grupos que articulavam o golpe. Assim, um discurso disseminou-se pelo país:

Para justificar um possível golpe da direita, cada vez mais disseminou-se a ideia de um golpe da esquerda em gestação. […] a artimanha da direita foi a de construir equivalência entre a agenda reformista que pedia mais justiça social e mais democracia, […], e um golpe contra a liberdade e a própria democracia. Essa assertiva levava a uma conclusão lógica: o eventual golpe da direita, na verdade, seria meramente reativo, portanto, legítima defesa da democracia e dos valores “ocidentais e cristãos” contra os “radicais” da esquerda3.

O grande paradoxo de toda essa situação era que, mesmo com o discurso golpista articulado por imprensa, grupos civis e militares, o apoio popular ao governo de João Goulart era consistente. Dados do Ibope de março de 1964 apontam que 45% consideravam o governo vigente “bom” ou “ótimo”, e as intenções de voto para um possível candidatura de Goulart para disputa presidencial em 1965 eram de 49%4.

Leia também: O que é Golpe de Estado?

Enfraquecimento de Jango

No final de 1963, a situação do Brasil era caótica. Camponeses e operários urbanos estavam sublevados, as esquerdas exigiam a ampliação das reformas e defendiam uma postura mais enérgica do governo, e as direitas articulavam-se com as Forças Armadas pela tomada do poder. Nesse contexto, João Goulart deu demonstrações de enfraquecimento.

Em 12 de setembro de 1963, aconteceu em Brasília a Revolta dos Sargentos. Essa revolta foi motivada pela insatisfação dos sargentos, que haviam sido proibidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de ocupar cargos no Legislativo. Os sargentos rebeldes dominaram prédios governamentais em Brasília, mas foram rapidamente contidos, e a situação foi colocada sob controle. Como nenhuma ação punitiva foi tomada por Jango, o governo transpareceu um ar de impunidade para certa ala das Forças Armadas caso houvesse outras rebeliões.

A segunda demonstração de enfraquecimento ocorreu em outubro de 1963, quando João Goulart apresentou ao Congresso uma proposta de decreto de estado de sítio por 30 dia. Há bastante divergência na historiografia acerca dessa medida tomada por Jango.

O historiador americano Thomas Skidmore afirma que Jango havia sido induzido por seus ministros militares para intervir contra a violência causada pelos movimentos sociais e para intervir no Estado da Guanabara por causa de declarações de Carlos Lacerda contra os militares brasileiros5. Já o jornalista Elio Gaspari trata isso como uma tentativa de golpe por parte de João Goulart6.

A proposta foi rejeitada pelos parlamentares de todos os grandes partidos (UDN, PSD e PTB). Três dias depois, Jango retirou a proposta do Congresso. A soma dos dois eventos abalou profundamente a imagem de Jango.

Março de 1964 e o golpe

situação no Brasil continuou extremamente instável e, em março de 1964, tomaram-se as ações que definiram o destino do país. A conspiração dos grupos da extrema-direita estava a pleno vapor, e uma ação de Jango desencadeou de maneira antecipada o golpe no Brasil. Em 13 de março de 1964, foi realizado o Comício da Central do Brasil.

Esse comício mobilizou de 150 mil a 200 mil pessoas. Nele, João Goulart reassumiu seu compromisso com a realização das Reformas de Base. O discurso de Jango deu a entender que o presidente havia abandonado a política de conciliação e que partiria na defesa das Reformas de Base junto aos movimentos sociais.

A reação conservadora foi imediata e ocorreu nas ruas no dia 19 de março com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Essa passeata mobilizou mais de 500 mil pessoas em São Paulo contra o comunismo e reivindicando a intervenção dos militares na política brasileira. Essa passeata foi organizada pelo Ipes e deixou bem clara a extensão do poder dos grupos golpistas e o temor da classe média com as reformas e com os movimentos sociais que pipocavam pelo país.

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Mapa Mental: Ditadura Militar

Mapa Mental: Ditadura Militar

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O golpe contra João Goulart estava organizado para acontecer por volta do dia 10 de abril, em uma ação conjunta de militares, membros do Ipes e dos EUA (os americanos organizavam-se a partir da Operação Brother Sam), mas as coisas não saíram como previsto. No dia 31 de março, uma rebelião organizada por Olympio de Mourão deu início ao golpe civil-militar.

Olympio Mourão era comandante da 4ª Região Militar e iniciou uma rebelião em Juiz de Fora. Suas tropas marcharam em direção ao Rio de Janeiro com o objetivo de derrubar o governo. A rebelião de Mourão contava com o apoio do governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, e, em um primeiro momento, foi vista com desconfiança por membros das Forças Armadas, como Castello Branco.

Durante esses acontecimentos, João Goulart manteve-se totalmente inerte e não tomou ações efetivas para deter os militares que marchavam contra o seu governo. Os grupos da esquerda ficaram esperando uma ordem superior para uma possível resistência, mas essa ordem nunca veio. Jango tinha conhecimento de que o golpe em curso tinha o apoio dos EUA e sabia que uma resistência daria início a uma guera civil – possibilidade rejeitada pelo presidente.

O grande aliado de Jango no exército, Amaury Kruel, retirou seu apoio a Jango, o que lhe colocou em isolamento e afastou as possibilidades de resistência interna nos quadros das Forças Armadas. Enquanto os militares marchavam contra o governo, os parlamentares brasileiros resolveram agir e, no dia 2 de abril de 1964, Auro de Moura, Senador da República, declarou vaga a presidência da República e abriu o caminho para que a Junta Militar tomasse o poder do Brasil. No dia 9 de abril, foi decretado o Ato Institucional nº 1 e a Ditadura Militar no Brasil começou a ganhar forma.

Notas
1 SCHWARCZ, Lilia Moritz e STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 441.
2 NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2016, p. 46.
3 Idem, p. 50.
4 Idem, p. 47.
5 SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 306.
6 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 49.

Crédito da imagem

[1] Evandro Teixeira/Instituto Moreira Salles

Por Daniel Neves
Graduado em História


A Deposição do Governador Miguel Arraes

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

Arraes conversa com oficiais no momento de sua prisão
 

 

deposição de Miguel Arraes foi um evento histórico brasileiro no contexto do golpe de Estado no Brasil em 1964Miguel Arraes ocupava o cargo de governador de Pernambuco e Joaquim Justino Alves Bastos, comandante do Quarto Exército responsável pela região Nordeste do Brasil, ordenou em 1.º de abril a deposição de Arraes. Além de deposto, ele foi preso pelo Exército Brasileiro e sujeito a impeachment pela Assembleia Legislativa, com seu cargo passando ao vice-governador Paulo Guerra.

Durante a administração de Arraes, os conflitos sociais em Pernambuco tinham notoriedade mesmo fora do estado. O governador, representante da esquerda populista, tinha a inimizade de classes como os latifundiários e comerciantes e dos militares nomeados pelo governo federal. O Quarto Exército aderiu ao golpe já tendo como alvos o governo estadual e movimentos como as Ligas Camponesas. No interior e entre a Polícia Militar ocorreram algumas movimentações para defender o mandato de Arraes, mas ele não quis combater. Tropas da Paraíba e Alagoas adentraram o estado, a Polícia Militar foi posta sob controle do Exército, a Marinha aderiu ao golpe e o governador foi cercado no Palácio das Princesas. Pressionado a renunciar ou fazer concessões, aceitou apenas a destituição militar, após a qual ocorreu seu impeachment.

Antecedentes

No início dos anos 60, Pernambuco atraía atenção nacional e mesmo nos Estados Unidos pelo intenso conflito social, com greves urbanas e rurais, denúncias de queima de canaviais e invasões de terras e disputa entre as Ligas Camponesas, Partido Comunista (PCB) e Igreja Católica por influência sobre o movimento camponês. Nesse contexto, em 1962 Miguel Arraes, representante da esquerda populista, foi eleito governador. Ele favoreceu a aplicação da legislação trabalhista no campo. Seu posicionamento em relação aos trabalhadores rurais rendeu-lhe a acusação de “agitador” e definiu a atitude dos militares que o depuseram em 1964. Para os conservadores, ele era um comunista e incendiário do Nordeste.  Suas relações com os americanos também não eram boas, e a Aliança para o Progresso desviou seu foco para outros estados.

Arraes tinha também um isolamento em relação ao governo federal de João Goulart, para o qual era “perigoso concorrente ligado ao Partido Comunista”;  o governador pernambuco almejava a eleição presidencial de 1965. Para o brasilianista Thomas Skidmore, Arraes temia um “golpe preventivo” do governo federal para remover governadores tanto de esquerda quanto de direita. Moniz Bandeira relata um plano frustrado do governo em abril de 1963, arquitetado pelo ministro da Guerra Amaury Kruel, para atacar tanto Arraes quanto Carlos Lacerda, o governador direitista da Guanabara. Porém, não há evidência de que Goulart também pretendesse intervir contra Arraes naquela ocasião.

Ainda assim, ele nomeou ao Quarto Exército generais conservadores (Castelo Branco e Justino) e por mais de uma vez os militares ocuparam os arredores do Palácio das Princesas. Isso foi notório em outubro de 1963, quando o presidente pediu o estado de sítio. Enquanto Arraes condenou o pedido, chamando-o de contrário ao povo e aos direitos e liberdades, as tropas de Justino ocuparam o Recife.A operação, que impediu um comício camponês na cidade, foi elogiada por Goulart. Na época também acusou-se outra operação contra Lacerda. O evento alimentou especulações de golpismo contra o presidente, mas não há evidência empírica.

Em fevereiro de 1964 o governo federal não reagiu a um locaute dos empregadores do Recife; para Skidmore, era a forma de Goulart prolongar o conflito de Arraes contra os latifundiários e comerciantes. As classes conservadores montavam resistência ao governo. Por sua vez, Justino entrou na conspiração para derrubar o presidente, e definiu por escrito que o Quarto Exército teria autonomia para derrubar os governos estaduais da região. Antes do golpe o Quarto Exército já havia definido como alvos os governadores de Pernambuco e do SergipeSeixas Dória. Também havia a expectativa de enfrentar uma forte reação da esquerda como um todo,[15] e os militares alardeavam a potencialidade armada da esquerda em Pernambuco. Paralelamente, apoiavam os latifundiários locais, que acumulavam revólveresescopetas e fuzis.

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