18/12/20
Há um clima de medo entre os produtores culturais neste final de ano
Há um clima de medo entre os produtores culturais neste final de ano. Responsáveis por projetos nas áreas de teatro, dança, artes visuais e economia criativa estão receosos de que a Secretaria Especial da Cultura do governo federal não dê a aprovação final a suas propostas a tempo e que, dessa forma, eles percam os patrocínios já acertados com as empresas.
Se isso acontecer, haverá no ano que vem um apagão de espetáculos culturais financiados pela Lei de Incentivo à Cultura – a LIC, o novo nome da Rouanet, principal mecanismo federal de incentivo à cultura no país -, aumentando o desemprego num dos setores que mais sofreu com a paralisação econômica durante a pandemia e que, com a segunda onda do vírus, não tem previsão de voltar a funcionar integralmente.
Segundo pessoas próximas aos trâmites, há mais de 200 projetos incentivados parados no gabinete do secretário André Porciúncula, só à espera de sua assinatura para que possam receber as verbas acertadas com a iniciativa privada e serem executados. Na fila estão uma grande exposição com apoio do Sesc no estado de São Paulo e um evento com palestras e entrevistas online com personalidades das artes, por exemplo.
Mas o prazo está se esgotando –o capitão da Polícia Militar que ocupa a cadeira principal do setor federal de fomento à cultura precisa assinar os projetos logo, porque a data limite para o depósito do dinheiro na conta dos produtores, por parte dos patrocinadores, é 30 de dezembro.
“Até 2018, a aprovação era super-rápida. Quando havia alguma solicitação por parte deles [o então Ministério da Cultura], era fácil de resolver, porque tinha técnicos especializados do lado de lá. Esse sistema não está funcionando mais como funcionava”, diz a gestora Rose Meusburger, que elabora projetos para inscrição na LIC.
Propostas que levam meses para mudar de status no sistema, pedidos de informação repetidos e sem sentido aos proponentes e arquivamento arbitrário de projetos por parte dos servidores da secretaria se tornaram comuns neste ano, de acordo com quatro produtores que falaram sob anonimato por medo de verem os seus projetos empacados de vez.
Um deles, por exemplo, que realiza há anos um conhecido evento de economia criativa na cidade de São Paulo, relata ter recebido da secretaria federal uma resposta afirmando que sua iniciativa não tinha histórico na área nem sinergia com o setor da cultura.
A principal causa de todos esses problemas, de acordo com uma produtora que trabalhou por mais de uma década com uma importante companhia de dança, foi a exoneração em julho de Odecir Prata da Costa, apontado como um dos maiores especialistas na Lei Rouanet do país.
Servidor na área da cultura desde 1988, Prata da Costa fazia, com sua equipe, um mutirão todo fim de ano para que os projetos fossem aprovados a tempo. Segundo essa mesma produtora, parecia haver uma certa boa vontade do então ministério em relação aos produtores culturais.
O processo desandou com a chegada de Porciúncula e as seguidas trocas de comando na pasta da Cultura neste ano, ela acrescenta. O cargo está no seu quarto ocupante, o ator Mario Frias, ex-galã da novela “Malhação”, afastado agora, em licença médica.
Procurado, Prata da Costa não quis falar. Porciúncula não respondeu aos contatos. Ignorando os questionamentos da reportagem, a secretaria se limitou a dizer em nota que para “não gerar acúmulo no imenso passivo das prestações de contas dos projetos de incentivo tributário, a admissibilidade de novas propostas está atrelada à capacidade operacional da análise das prestações de contas”.
De acordo com um dos produtores e Meusburger, a gestora, a falta de pareceristas –profissionais que avaliam os projetos depois da captação de 10% da verba– também tem contribuído para a lentidão. A reportagem teve acesso a imagens de uma conversa que um produtor teve por WhatsApp com Ronaldo Gomes, coordenador do Programa Nacional de Apoio à Cultura da Funarte, a Fundação Nacional de Artes.
No diálogo, Gomes diz que a Fundação Biblioteca Nacional, a FBN, está sem pareceristas desde agosto e dá a entender que a própria Funarte está desfalcada desses profissionais. Procurado, o servidor não se manifestou. A FBN afirmou que o assunto compete à Secretaria Especial da Cultura mas que seus pareceristas estão, sim, trabalhando.
A demora na liberação dos projetos fez com que a Vale – um dos maiores investidores privados em cultura no ano passado, com ao menos R$ 55 milhões aportados, segundo o governo– adiasse duas vezes a divulgação dos selecionados de seu edital deste ano e pusesse em seu site um aviso dizendo que “algumas propostas ainda estão em avaliação pelo órgão federal”. Dos projetos pré-selecionados, 80% ainda aguardam a assinatura de Porciúncula, informa a empresa. Não há data para a divulgação dos resultados.
O dinheiro da mineradora ajuda a manter de pé o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, a Orquestra Sinfônica Brasileira e o Instituto Inhotim, entre outros equipamentos culturais. A previsão da empresa é distribuir, com o edital deste ano, R$ 25 milhões em projetos a serem executados via LIC a partir de janeiro.
Nenhum porta-voz da Vale quis comentar os atrasos. Um gigante do varejo que tem projetos incentivados em artes visuais à espera de aprovação também não aceitou falar.
O alinhamento ideológico do governo Bolsonaro também preocupa os produtores, que são unânimes em afirmar que existe desprezo do Executivo com a cultura e que a demora na tramitação dos projetos na secretaria parece ser de propósito, para prejudicar um setor que tradicionalmente se posiciona à esquerda.
Uma produtora diz que a administração federal pensa que só há comunistas em cima do palco e esquece a cadeia econômica do teatro, que inclui o diretor, o contrarregra, o camareiro, o administrativo e outros profissionais. No ano passado, Bolsonaro chamou a Lei Rouanet de “desgraça” e afirmou que o mecanismo servia para arrebanhar artistas para apoiar os governos do Partido dos Trabalhadores.
Só no primeiro semestre deste ano a captação de recursos via Lei Rouanet despencou 35%, a maior queda da última década, em parte devido à pandemia. A tendência para o ano que vem é de mais queda nos aportes das empresas, segundo fontes.
Quem parece não sair perdendo na jogada, por outro lado, é o setor privado, que pode descontar até 4% do imposto de renda via LIC. Horácio Olandim, sócio da agência de captação CX Projetos, diz que as empresas costumam ter duas outras propostas suplentes para o caso de o primeiro não ser aprovado a tempo.
Devido ao atraso na tramitação, por exemplo, o produtor do evento de economia criativa que estava entre as centenas de proponentes à espera de aprovação perdeu os R$ 750 mil em patrocínio que havia acordado previamente com uma investidora. O dinheiro acabou pulverizado em projetos de educação e responsabilidade corporativa, só indiretamente ligados à cultura.
Apagão online e offline
O apagão se estende também ao site da Lei de Incentivo à Cultura. Na página, ainda consta que a Secretaria Especial da Cultura é subordinada ao Ministério da Cidadania, quando na verdade está sob a pasta do Turismo desde maio. Na seção de notícias do site, o último post foi publicado em junho, ou seja, há quase seis meses. Uma versão do aplicativo Salic Mobile, onde os proponentes podem acompanhar a tramitação de seus projetos, não existe mais; a versão de Android segue ativa.
No primeiro semestre de 2020, a captação de recursos via Lei Rouanet caiu 35%, a maior queda da última década, atingindo R$ 199 milhões, contra R$ 306 milhões no mesmo período do ano passado. Como o ano não terminou, ainda não é possível saber o saldo de 2020, mas a tendência é de queda nos aportes das empresas, segundo fontes.
Um dos maiores investidores privados em 2019, para projetos com com execução neste ano, a Vale aportou ao menos R$ 55 milhões via lei de incentivo, segundo o governo; a mineradora já prevê para 202 R$ 25 milhões de aporte para a cultura pela lei. Com aporte de R$ 33 milhões, o Banco do Brasil foi a estatal que mais investiu em cultura no ano passado, seguido da Petrobras, com cerca de R$ 25 milhões; neste ano, o banco aportou até agora quase R$ 20 milhões, e a petrolífera, R$ 7,6 milhões.