03/02/24
Cajueira
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Oiê, tudo massa? Aqui é Mariama Correia, cofundadora da Cajueira. Faz tempo que a gente não se fala. Espero que teu ano tenha começado tranquilinho. Chego com notícias boas. É sobre uma amizade que começou quando estive no Cariri cearense, em agosto do ano passado. Conheci Raquel Paris num barzinho em Juazeiro do Norte. Naquele papo despretensioso, ela me disse coisas muito profundas sobre identidade, territórios e ancestralidades. Entrevistá-la passou a ser um desejo desde então. Raquel Paris é uma mulher indígena, caatingueira, jornalista e pesquisadora, gestora da Escola de Ancestralidades Kariri e ativista climática com 20 anos de atuação no bioma Caatinga. Atualmente realiza doutorado em Comunicação na Universidade Federal do Ceará, com ênfase em conhecimentos dos povos da Caatinga e diálogo multiespécie. Cinco anos nordestinizando narrativas! É um prazer abrir os caminhos deste 2025, ano em que a Cajueira completa 5 anos, com as palavras de Raquel sobre identidades e ancestralidades indígenas no Nordeste – um tema, em geral, pouco explorado. Entender a história dos povos indígenas no Nordeste, que “sofreram os primeiros contatos com a máquina de guerra colonial” é fundamental para entender o Brasil, nos diz ela. “Foram nossos corpos que desaceleraram a máquina de invasão das outras regiões do Brasil”, afirma. Nossa conversa aconteceu por videoconferência. Eu, em um apartamento em São Paulo, e ela, em uma casa no Crato, no sopé da Chapada do Araripe. Tinha chovido no Cariri e Raquel falou sobre o que via da janela: “a Chapada do Araripe é tão extraordinária quanto desconhecida. É um território de confluência, povos nativos em trânsito, que veem o Vale do Cariri e a Chapada do Araripe como um vale encantado”, disse. Espero que você curta a entrevista e que tenha um 2025 encantado! A Cajueira completa cinco anos, em 2025, nordestinizando narrativas e descentralizando o jornalismo brasileiro. Comemore com a gente doando para a Campanha Plantio e/ou faça um Pix para cajueira.ne@gmail.com Cheiro! Acho que nossa conversa precisa começar pelo Cariri. Então, explica pra gente um pouco do teu território, de onde você tá, do teu povo e de tu também, claro. Eu tô exatamente no Sítio Campo Alegre, no sopé da Chapada do Araripe. Uma das centenas de comunidades da Chapada do Araripe. É um território de confluência de povos nativos em trânsito, que veem o Vale do Cariri e a Chapada do Araripe como um vale encantado porque, você imagine, num contexto de semiárido e de Caatinga, que é um bioma que tem estiagens. A pessoa tá ali andando, encontrando florestas mais secas e aí vê aparecer diante de si um paredão gigantesco com uma floresta densa, enorme e riquíssima. Com bichos, flores, uma diversidade de seres. E os povos se encontram ali e fazem suas encantarias. Até hoje a Chapada do Araripe é um lugar onde as pessoas se encontram para fazer suas rezas, nas romarias do padre Cícero, nos encontros de rezadeiras. Os povos veem a Chapada do Araripe como um centro de poder, de cura, de se revigorar aqui, porque ela está imantada com essas forças – tanto dos humanos como dos não humanos também. No contexto de umbanda, há muitos pontos de caboclo que falam da Chapada do Araripe. É lar de muitas encantadas e encantados. Um lugar de muito poder no corpo da terra, é desse lugar que a gente está falando. E é também chamado, uma parte dele, de Cariri, devido a esse grande grupo que se estabeleceu aqui. Esse povo Kariri que ancestralmente habitava desde o médio São Francisco na Bahia até a Chapada do Araripe. Eles se dividem em outros grupos que a gente vai chamar de Xukuru-Kariri, Kiriri, Kariri-Xokó. São povos extremamente adaptados às regiões semiáridas e às Caatingas – que faço questão de colocar no plural porque há muita diferença entre a Caatinga na Paraíba e a daqui. O Nordeste tem a segunda maior população indígena do país. Mas parece que, quando a gente fala de questões indígenas no Brasil, só se pensa na Amazônia. Por quê? Me parece que quando a gente entender a história do povo indígena no Nordeste, talvez a gente entenda o Brasil. A gente sabe que o Nordeste é um território de primeiro impacto. A informação da chegada da máquina colonial de guerra na Bahia é muitas vezes tratada como pouca coisa, mas não é. É uma informação de fim de mundo. Essa máquina de guerra chega primeiro nos povos num território Pataxó, Tupinambá. Primeiro vieram os contatos de exploração, a guerra veio depois. Mas o projeto sempre foi de predação e exploração. Essa guerra vai ter muitos nomes como “guerra aos bárbaros”, mas sabemos hoje quem são os bárbaros. A narrativa é sempre que eles ganharam e nós perdemos. Mas a história é que, no momento em que eles aumentaram sua violência, nós aumentamos nossa resistência. Glicéria Tupinambá, uma grande liderança do povo Tupinambá na Bahia, diz algo extremamente importante. Que foram nossos corpos que desaceleraram a máquina de invasão das outras regiões do Brasil. Então, se os povos da Amazônia foram conhecer a máquina de guerra 300 anos depois dela ter chegado no Nordeste, foi porque nossos corpos apararam as balas. Todos esses conflitos, como o do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, no Crato, que devido a uma leitura brilhante de Nego Bispo vamos chamar de conflitos contracoloniais, podemos chamar também de resistência indígena e quilombola, sobretudo resistência indígena no contexto do semiárido. E essa resistência acontece até hoje? Até hoje. Quando a máquina de guerra chega nesse território chamado Sertão, vai olhar para esses povos e chamar de bárbaros. Vai dizer que temos a língua travada, que não temos saberes, conhecimento, cultura. Um olhar extremamente racista sobre nossos corpos. O que resta para nós, então? Um projeto ainda pior de extermínio. E para nosso bioma também. Todas as formas de violência, desde extermínios dos corpos até um etnocídio, memoricídio, epistemicídio, cosmocídio. E aumenta a nossa resistência. Sobreposto a esse apagamento tem um projeto do próprio Estado criando categorias sobre nós, nos redefinindo. Não vamos mais ser Kariris, vamos ser caboclos, tapuias, sertanejos. Isso reforça o apagamento da nossa ancestralidade. Do outro lado, se estabelece uma imagem colonial do indígena, que é a dos parentes que habitam a Amazônia. Eles vão ser denominados os “verdadeiros indígenas”, habitantes da floresta, onde falam seus idiomas maternos e habitam determinadas configurações de aldeias. A nossa diversidade de corpos, de maneiras e de jeitos é negada. Nossas habitações, como a taipa, que é ancestral, não vão ser vistas como preciosas, mas como algo fracassado. Euclides da Cunha fala na nota introdutória de ‘Os Sertões’, onde nos chama de “subraças sertanejas do Brasil”, que são “destinadas ao desaparecimento”, e nada menos que isso é reservado a nós. Somos misturados demais. Mas essa mistura aponta para uma confluência profunda com os povos indígenas afrodiaspóricos. Como os povos indígenas no Nordeste estão reivindicando hoje essas identidades, memórias e territórios? Não só o que hoje chamamos de movimento indígena, com suas instâncias constituídas por todo o Brasil, que dialogam com o Estado para criar direitos e fortalecê-los. Também as resistências territoriais, desde os conflitos para retomada de territórios, como também a resistência que passa pela universidade, pela cultura, pelo reavivamento cada vez maior da nossa espiritualidade, como os terreiros de Jurema. Os muitos espaços de reflorestamento da Caatinga, de ativismos climático, que formam uma rede de resistência desde que a guerra começou. Nunca paramos. Entretanto, esse lugar chamado Brasil não tem ideia do que se passa aqui. Não sabe o que é a Caatinga, esse bioma que só tem no Brasil. Você vê teu trabalho também nesse sentido de resistência? Minha escolha pela academia, esse espaço extremamente colonial, eu vejo como reparação. Gosto dessa palavra. Porque penso também como uma reparação espiritual. Quando a gente começa a reparar as forças espirituais que foram insultadas, desacreditadas, elas recebem isso como uma espécie de pacificação e nosso espírito também. Nossas ancestrais que foram silenciadas, assassinadas, estupradas e receberam todo tipo de infâmia, elas têm uma libertação. É um trabalho que não é só feito para os vivos, mas para os mortos também, para a espiritualidade. Quais são as grandes questões indígenas pensando nas realidades do Nordeste hoje? A luta pela terra é uma das grandes lutas dos povos indígenas no mundo, que veio à tona com o Marco Temporal [projeto de lei que propõe que só sejam demarcadas terras ocupadas pelos indígenas a partir da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988]. Entretanto, aqui no Nordeste, tem uma coisa que hoje tem nome devido a um pensador brilhante chamado Casé Angatu, que é a diáspora indígena. Devido a essa guerra que falamos, muitas pessoas foram desterritorializadas. Essa diáspora indígena vai produzir um apagamento. Na década de 50, por exemplo, vai ter uma saída em massa para o Sudeste. As pessoas dizem: minha avó veio do Cariri. Essa é uma informação ancestral, porque o Cariri é uma região profundamente indígena. Então essas grandes ondas migratórias de nordestinos para o Sudeste, que a gente conhece como êxodo rural, também podem ser lidas como diásporas indígenas? É isso que o professor Casé vai pontuar. A gente aprende na escola como “êxodo rural”. Mas quem é essa população rural que migrou? O racismo nos generaliza. Nós nos tornamos sujeitas genéricas, de um lugar incompreendido. Esse profundo racismo não permite que se produza uma arqueologia sobre quem são essas pessoas chamadas nordestinos ou paraíbas, baianos. Quando essas pessoas são desalojadas e empurradas para outras regiões, elas não chegam como uma tábua em branco. Elas carregam o território com seus corpos. O maior exemplo disso? O São João. No São João todo mundo se transforma em índio. E não é qualquer índio, é índio nordestino. Todo mundo vai comer milho, dançar toré. Porque a gente chama de quadrilha, mas é uma quadrilha que foi devorada pelos nossos costumes. Estamos todo tempo girando em roda, nunca vi nada parecido na Europa. A gente civilizou muito a cultura deles. O São João é o nosso Bati, nosso ano novo, quando a constelação de Orion aponta no céu. Quer dizer uma virada de ano novo, onde tudo se transforma. Coincide com a festa da colheita. É uma festa do céu, entre o céu e a terra. Por isso Luiz Gonzaga vai cantar: “olha pro céu meu amor, veja como ele está lindo.” A gente entende que o cuscuz é uma comida que veio com os árabes, né? Mas tem muita das ancestralidades indígenas nessas coisas que hoje vemos como símbolos nordestinos. Eu já morei no Rio de Janeiro, no Sul e gosto muito de andar pelo Norte. Mas nunca vi, em parte alguma, tirando o Nordeste, o povo comendo todo dia cuscuz, tapioca e macaxeira. Deitar em rede o povo da região Norte também faz. Só que, como a gente chama tudo isso de cultura nordestina, a gente não vê que é cultura indígena. Sabe? Comer milho é a base alimentar dos povos originários das Américas. Para encerrarmos, conta um pouco de como funciona a Escola de Ancestralidade Kariri e como as pessoas podem conhecer. É um projeto nessa tentativa de salvaguarda e difusão das culturas originárias da Chapada do Araripe. Nosso perfil no Instagram é @ancestralidadeskariri. Hoje temos planos para que nosso podcast Histórias de Caboclas possa voltar com novos ciclos de entrevistas e histórias do território. É o primeiro podcast feito no Nordeste por pessoas indígenas para pessoas indígenas. Ficamos muito felizes com isso! Gostasse? Ajude a Cajueira a continuar valorizando a mídia independente nordestina. Recebeu esse material de alguém? Assine nossa curadoria quinzenal de conteúdos do jornalismo independente nos estados do Nordeste. |