Especial de domingo : Arraes e Neruda

20/03/22

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*Por Ítalo Rocha Leitão

 

Paris, primavera de 1965. Arraes caminha pelas ruas da capital francesa à procura de um endereço onde um amigo querido do Brasil estava hospedado na casa de uma família chilena e o esperava para lhe entregar um presente. Poucos meses antes, os militares brasileiros, responsáveis pelo famigerado golpe de 64, haviam retirado Arraes, à força, da cadeira que ele ocupava, no Palácio do Campo das Princesas, como governador de Pernambuco.

 

Na Rue l’Ancienne Comedie, nº 88, no Quartier Latin, bairro boêmio frequentado pela intelectualidade parisiense, Arraes encontrou o número que procurava. Foi recebido afetuosamente pelo conterrâneo Celso Furtado, que trouxera do Chile uma encomenda muito especial.

Tratava-se de um livro de Pablo Neruda, o poeta chileno, que seis anos depois ganharia o Prêmio Nobel de Literatura. O livro, de 1.924 páginas, intitulado Obras Completas, estava oferecido a Arraes por um grupo de brasileiros que cumpria um exílio recente no Chile por força do golpe militar brasileiro. Ao abrir, o ex-governador de Pernambuco se deparou na primeira página com as assinaturas de Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Almino Afonso, Arthur da Távola, Tiago de Melo e Paulo Freire. Na dedicatório, cada um escreveu uma mensagem de conforto ao colega de exílio. Arraes ficou emocionado. Na mesa, vinho e queijo. Na sala, o governador deposto de Pernambuco folheava e comentava sobre a obra de um dos maiores poetas da América do Sul, que já há algum tempo ganhara fama no continente europeu.

Quando a noite atingia um estágio já bem avançado e o vinho também, a campainha da residência tocou. Celso Furtado e os donos da casa, meio perplexos, indagaram, em voz alta, quem seria essa visita não anunciada e numa hora já incomum para se ir à casa de alguém? No portão, aquele homenzarrão se destacava não só pela altura, mas pela elegância e por um casquete que lhe encobria a calvície e lhe dava um charme a mais. Era Pablo Neruda, de carne e osso. Arraes o conheceu naquele momento e nunca mais esqueceu aquele encontro. Mais vinho foi servido, agora com uma taça a mais. O presente que Arraes acabara de receber foi mostrado ao poeta chileno, que pôs de imediato o seu autógrafo. Aquela coincidência teve um significado tão forte e místico para Arraes que ele levou a lembrança daquele momento para o resto da vida.

Quase quarenta anos depois daquele encontro, Arraes deu o livro, recheado não só de poemas, mas também de história e de emoções, ao seu filho Luiz Cláudio Arraes de Alencar, numa ocasião muito especial para um pai: Lula, como é conhecido, acabara de concluir o doutorado em Medicina. E, assim, aquela noite parisiense, tão singular, se perpetuou para sempre no seio da família Arraes.

 

*Ítalo Rocha Leitão é jornalista

Um comentário sobre “Especial de domingo : Arraes e Neruda”

  1. Rodolfo Aureliano20 de março de 2022 às 12:29Responder

    Emocionante!

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