08/10/22
Por Leonardo Sakamoto
blogfolhadosertao.com.br
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Jair Bolsonaro associou o analfabetismo no Nordeste à vantagem de 6,2 milhões de votos que Lula teve em relação a ele na região no primeiro turno. Disse que há “falta de cultura”. Isso não foi um deslize, isso foi legitimação.
“Lula venceu em nove dos dez estados com maior taxa de analfabetismo. Você sabe quais são esses estados? No nosso Nordeste”, afirmou Bolsonaro. Ele ainda disse que a região é administrada há 20 anos pelo PT (o que é mentira), mas foi além, dizendo que a esquerda levou o analfabetismo e “a falta de cultura” para lá.
A ideia de voto “errado” vinculado ao nível de escolaridade ou de renda ou mesmo de cor da pele é uma bizarrice criminosa propagada há tempos para criar uma justificativa política. Não surpreende que o presidente, que apela sistematicamente a esse tipo de expediente, adote-o agora. Surpreende que pessoas estejam surpresas.
Em 2014, quando o Nordeste também ajudou a dar mais um mandato ao PT, os mesmos eleitores violentos rechearam as redes sociais com comentários preconceituosos contra os moradores da região. Naquela época, votaram em Aécio Neves, agora em Bolsonaro.
Com essa validação de seu candidato, os seguidores de extrema direita de Jair sentem-se empoderados para continuar a onda de preconceito contra nordestinos. Essa violenta tática de constrangimento pode gerar votos entre um naco da elite preconceituosa do próprio Nordeste, mas tende a aumentar mesmo a fratura entre dois Brasis. E, depois, o presidente diz que não estimula o “nós contra eles”.
O mais irônico é que a realidade das urnas contradiz Bolsonaro. O presidente ganhou 1,3 milhão de votos no Nordeste em comparação à sua votação de 2018. Lula, por outro lado, teve uma votação 23 pontos maior que a de Haddad naquele ano no Sudeste e 17 pontos maior que a dele no Sul. Os dados são de apuração de Amanda Rossi e Juliana Caro, no UOL.
Burro é quem encara seu preconceito violento como sabedoria
Nem precisaríamos explicar que uma pessoa analfabeta não é burra, apenas não teve acesso à educação formal devido à burrice do Estado brasileiro.
Burro não é quem separa sujeito e predicado por vírgula. Muita gente não entende isso e desvaloriza a opinião do outro por não compartilhar dos mesmos padrões de fala ou do mesmo universo simbólico. Algumas das pessoas mais sábias que conheci são iletradas. E alguns dos maiores idiotas têm doutorado. Significa que os iletrados são melhores que os doutores? Não. Então, o contrário? Também não. Pois é burrice achar que usar ou não a norma culta da língua é condição para participar do debate público.
A burrice é quem menospreza o conhecimento, seja ele qual for, chegando a odiar quem o detém ou quem busca aprendizado. Nesse sentido, podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que o atual governo – que lutou contra vacinas, que estragou o Enem, que cortou orçamento de universidades e institutos de pesquisas – é burro.
Essa burrice, prepotente e apressada, também xinga um texto ou vídeo na rede sem ter consumido nada além de seu título ou visto o nome do autor ou autora. E, diante das críticas sobre a superficialidade desse comportamento, rosna, dizendo que tudo o que é importante pode ser escrito em uma linha ou um tuíte. Ou que acredita que um produto é ruim simplesmente por não ter ido com a cara do rótulo.
Burro é aquele que vê seu preconceito violento como sabedoria.
Essa burrice, montada na soberba, pensa que já sabe de tudo a ponto de tachar os que discordam de sua visão de mundo como mal informados, comprados ou manipulados sem apresentar dados e fatos que corroborem a crítica. Ou tenta calar as vozes diferentes da sua por encarar a dissonância como ruído e não como música.
Pois a burrice sempre tenta destruir o conhecimento que ameaça jogar luz sobre ela própria.
No dia 10 de maio de 1933, montanhas de livros foram criadas nas praças de diversas cidades da Alemanha. O regime nazista queria fazer uma limpeza da literatura e de todos os escritos que desviassem dos padrões impostos. Centenas de milhares queimaram até as cinzas. Einstein, Mann, Freud, entre outros, foram perseguidos por pensarem diferente da maioria. A Alemanha “purificou pelo fogo” as ideias imundas deles, da mesma forma que, durante a Contra-Reforma, a Santa Inquisição purificou com fogo a carne, o sangue e os ossos daqueles que ousaram discordar de sua interpretação da bíblia.
Ironicamente, hoje há alguns que se dizem cristãos, herdeiros do protestantismo de Lutero, que condenam ao fogo quem ousa deles discordar. Inclusive sobre quem seria o melhor candidato nesta eleição.
A burrice também é incapaz de aceitar o próprio erro, transferindo a culpa para o outro. Ou, diante de um questionamento, foge da autocrítica, dizendo que outra pessoa ou partido também faz a mesma coisa.
A burrice não pede desculpa, pois a burrice de um indivíduo acha que é absolvida pela burrice de outro indivíduo ou do coletivo.
A burrice não aceita a existência de outra versão que interprete os fatos além da sua. É incapaz de reafirmar sua visão e, ao mesmo tempo, conviver com análises divergentes. Enxerga a opinião alheia como “notícia falsa” não por desconhecer a diferença entre formatos de textos narrativos e opinativos, mas por não admitir o conteúdo.
A opinião pública e parte dos intelectuais alemães se acovardaram ou acharam pertinente o fogaréu nazista descrito acima. Deu no que deu. Hoje, vemos muitos se acovardarem diante de ondas burras, intolerantes e violentas frente à diferença e o conhecimento. Como disse Simone Tebet, nesta quarta, neste momento “não cabe a omissão da neutralidade”.
Como sempre digo: falta amor no mundo, mas falta interpretação de texto. E calmante na água de muita gente.