04/00/22
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Por Ricardo Leitão *
Em pouco menos de um mês, 156.454.011 brasileiros poderão votar nas eleições gerais de 2022. Tempos idos, o dia do voto era chamado de festa cívica ou festa da democracia. Depositar a cédula na urna (ainda não eletrônica) era um dever patriótico, às vezes exercido com solenidade por senhores trajando paletó e gravata. No Brasil de hoje, discute-se se um cidadão pode ingressar em uma sessão eleitoral portando arma de fogo. Há medo em ser agredido na rua por vestir uma camisa com as cores da campanha de algum candidato. Evita-se colocar adesivo nos vidros dos carros: a reação pode ser uma pedrada na janela. Como chegamos a tempos tão violentos e sombrios?
O subdesenvolvimento político não é obra do acaso. Precisa ser cevado por ditadores e aprendizes de ditadores, com o propósito de exaurir a democracia. No século passado, nos anos 1960 a 1980, a ditadura gerada pelo Golpe de 1964 impôs a uma geração de brasileiros perseguição, tortura, assassinato, exílio. Na segunda década de 2022, a tentativa da imposição do subdesenvolvimento político cabe a Jair Bolsonaro e seus cúmplices.
O compromisso de Sua Excelência com a democracia e a realização das eleições é igual ao dos líderes golpistas de 1964. Naquele tempo, eles se valeram dos tanques nas ruas e da violência da mentira. Ao que se sabe, Bolsonaro ainda não cogitou mobilizar tanques. Mas a mentira revestida por uma oratória de ódio aos adversários, tratados como inimigos, todos os dias engrossa a tensão sobre as eleições e aumenta a insegurança do eleitor. Não vai demorar e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) será provocado a se manifestar, além do porte da arma, se é prudente ingressar na sessão eleitoral vestindo um colete à prova de balas.
Nesse momento, Sua Excelência expelirá uma gargalhada sarcástica: estará se cumprindo mais uma das manobras golpistas para tumultuar as eleições, ampliando-se as possibilidades de uma ruptura institucional. Elas se sucedem desde o início do desgoverno e ganham força à medida que diminuem as possibilidades de vitória numa disputa democrática.
De início, foi o ataque mentiroso de Bolsonaro ao sistema eleitoral, que teria sido fraudado em 2018 (a própria eleição dele, naquele ano, teria sido então fraudada?). Em seguida, a tentativa de quebrar a confiança da população na urna eletrônica, em uso desde 1996, reconhecida internacionalmente como um equipamento garantidor da lisura das eleições brasileiras. Insatisfeito, partiu Sua Excelência para exigir o voto impresso. Foi mais uma vez derrotado e então recorreu às Forças Armadas. Elas deveriam dar pareceres sobre a segurança da urna eletrônica e organizar uma apuração própria dos votos, paralela à apuração oficial do TSE.
O tumulto, evidentemente planejado, se estendeu por meses, contaminou o debate dos candidatos na campanha e só beneficiou Bolsonaro, o único que forceja no caos, na violência e no subdesenvolvimento político. O benefício só não é maior por sua incapacidade de obter dividendos que, eventualmente, podem lhe favorecer. Por exemplo, a entrevista que concedeu ao Jornal Nacional, assistida por 40 milhões de telespectadores. Sua Excelência se saiu tão mal, diante de questionamentos simplórios, que sua assessoria estuda recusar sua participação nos próximos debates.
Afogado em crises que criou ou agravou, estacionado nas pesquisas de intenção de votos, Bolsonaro sabe que é difícil se manter no poder e, dessa forma, escapar de processos e da cadeia. Em algum momento, o golpe pode ser sua última opção. Portanto, que ninguém o acuse de surpreender desavisados. Filhote da ditadura; investigado por planejar ato terrorista; expulso do Exército por indisciplina; defensor da tortura e de torturadores; misógino; homofóbico; xenófobo; envolvido em corrupção, Jair Bolsonaro não tem qualquer escrúpulo ao afirmar que pretende se reeleger em nome da família, da Pátria, da liberdade e da democracia.
Não é mais um delírio. Isso vem sendo massificado na propaganda eleitoral da sua campanha no rádio e na televisão. A que liberdade se refere? A de facilitar a compra e o porte de armas, estimulando os crimes letais? A liberdade das milícias digitais, rapinando os adversários de Sua Excelência? E que democracia deseja? A que garanta o “direito” da maioria de esmagar a minoria ou fazê-la calar pela censura? Qual democracia sairá das urnas eletrônicas de outubro, se delas sair alguma democracia?
Impossível no momento prever. No entanto, admita-se que Bolsonaro seja derrotado e não consiga dar o golpe de Estado que armou. Ainda assim, há quem sustente que algum ganho político ele terá. Sairá da eleição com cerca de 40 milhões de votos e a liderança da direita, algo inexistente na política brasileira, até então, com tamanha dimensão. Lideraria a oposição ao governo eleito.
A luta contra a direita e o autoritarismo, portanto, vai continuar. Sua Excelência reuniu e animou a direita e a extrema direita. Talvez seja essa uma das maiores tragédias de sua herança maldita. No mundo e no Brasil a direita faz parte do sistema democrático. Contudo, a direita que ameaça a democracia, não. Essa deve ser combatida e neutralizada, até que um dia um cidadão não precise vestir um colete à prova de balas para votar.