Especial de domingo: O escárnio do cocar de Bolsonaro

26/03/22

blogfolhadosertao.com.br

 

  • Ricardo Leitão

 

Quando líder da extrema direita na Câmara dos Deputados, Jair Bolsonaro lamentava que o Exército brasileiro não tivesse a mesma eficiência do norte-americano no enfrentamento de povos indígenas. Aqui, se conciliou, segundo Sua Excelência. Lá, cargas de cavalaria e tiros de fuzil resolveram de vez a questão.

 

Ainda como deputado federal, Bolsonaro tentou impedir a criação da Terra Indígena Yanomami, um dos mais importantes povos da Amazônia. Na campanha presidencial, prometeu que não demarcaria nenhuma terra indígena, o que até agora cumpriu. Denunciou falsamente que os índios eram os responsáveis pelos incêndios criminosos na floresta, a serviço de ONGs “de esquerda” que difamavam o Brasil no exterior.

Não parou por aí: ao discursar na ONU, acusou o líder indígena Raoni Metuktire de ser manobrado por ONGs e atacar sistematicamente a política ambiental do País. Diante das reações negativas, tentou remediar, desastradamente: “Os índios estão evoluindo e se tornando humanos”. Como se não bastasse, Sua Excelência reduziu, no Orçamento Federal, as verbas para proteção das terras indígenas.

Em outros tempos e países, Jair Bolsonaro poderia até ser processado, por tamanha sucessão de atentados à vida e à cultura dos povos nativos brasileiros. Aqui, se autoconcedeu a Medalha do Mérito Indigenista, em escandaloso reconhecimento à sua defesa dos povos da Amazônia. Posou para fotos com um cocar de penas, sob o protesto de Sydney Possuelo, um herói nacional.

Ex-presidente da Funai, Possuelo descende da estirpe do marechal Cândido Rondon e dos irmãos Villas-Bôas. Sua vida foi dedicada ao estudo e à proteção dos índios, sendo o idealizador da política de respeito ao isolamento voluntário de algumas etnias. Um dia após Bolsonaro receber a medalha, Possuelo devolveu formalmente a sua, recebida há 35 anos. O gesto de um homem digno, que ecoa como o urro de uma onça ferida.

O que fará Sua Excelência com o colorido cocar, que para ele teria apenas a serventia de fotos com “cara de índio”? Além desse uso, nenhum outro. O Bolsonaro sem cocar já operava semanas antes na Câmara dos Deputados, orientando sua bancada a aprovar a votação em urgência do projeto de lei que autoriza a mineração em terras indígenas demarcadas. Com a urgência, aprovada, o projeto será votado, no início de abril, diretamente no plenário, sem passar pelas comissões técnicas.

Pela porta aberta à mineração empresarial e artesanal entra o garimpo ilegal. A Amazônia concentra 93,7% do garimpo de ouro do Brasil. De 2010 a 2020 a área de exploração em territórios indígenas e unidades de conservação – garimpo ilegal, portanto – se expandiu 495% e 301%, respectivamente. Em 2020 metade de toda a área de garimpo estava em terras indígenas e unidades de conservação. O impacto no meio ambiente, com o envenenamento das águas da floresta, contaminadas pelo mercúrio usado na extração ilegal do ouro, é gigantesco. Morrem os peixes, morrem os índios.

A fiscalização foi propositadamente reduzida pelo desgoverno de Bolsonaro, desde a gestão de Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente. Ele foi investigado pela Polícia Federal, depois de envolvimento com quadrilhas de contrabandistas de madeira ilegal.

Um dos legados de Salles foi o que passou a se chamar de “conciliação ambiental”, uma tentativa de acordo entre o governos e infratores, antes dos autos de infração serem remetidos à Justiça. O resultado: a “conciliação” foi propositadamente estendida, de forma que cerca de 5 mil autos de infração ambiental correm hoje o risco de prescrição – para felicidade e lucro fácil dos infratores.

As suspeitas de corrupção, o risco à saúde dos índios e de degradação ambiental são tão evidentes que forçaram uma manifestação oficial do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram). Ao se referir ao projeto de lei que pretende regularizar a mineração em terras indígenas, diz o Instituto: “O projeto não é adequado para os fins a que se destina. Há necessidade de consulta aos povos indígenas, além de pesquisa geológica, estudos de viabilidade econômica e licenças ambientais”. O Ibram reúne as maiores empresas de mineração do Brasil.

O que fará Jair Bolsonaro com seu cocar de penas, depois de entupir as redes sociais com suas fotos de “cara de índio”? Devidamente paramentado, poderia fazer campanha presidencial em Manaus, onde seu desgoverno, na pandemia, deixou morrer dezenas de pessoas por falta de oxigênio em UTI’s. Ou se guardar para quando o Carnaval de 2023 chegar e desfilar, de cacique Bozó, em uma escola de samba financiada por militantes do gabinete do ódio.

Porém, alguma coisa haverá de ser feita e, havendo, vai se juntar ao esforço compulsivo de Bolsonaro de se reeleger. Só que, no caso do cocar de penas, talvez Sua Excelência tenha cometido um erro. Segundo as lendas urbanas de Brasília, usar um desses chama prolongado azar. Ulisses Guimarães, candidato à Presidência da República em 1989, ostentou o adereço. Deu no que deu.

 

  • Ricardo Leitão jornalista

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