Desmando: Mais da metade das obras de pavimentação da Codevasf, com verbas federais, ficam só na promessa

08/08/23
Por Jade Abreu, Sarah Teófilo e Natália Portinari0
blogfolhadosertao.com.br

 

 

  • De 2021 para cá, a estatal teve um boom de contratos, que somam mais de R$ 1 bilhão
  • Empreiteiras protelam os serviços e se beneficiam de um modelo atípico de contratação que dificulta a fiscalização e facilita os desvios
  • O Metrópoles percorreu 1,8 mil quilômetros pelo país e conferiu a decepção e o drama de brasileiros que dependem das vias

Na poeira brava da seca que castiga Brasília nos primeiros meses da segunda metade do ano, a pouco mais de 30 quilômetros de distância da Praça dos Três Poderes, a comerciante Márcia Regina de Sousa, 32 anos, espera a filha, Jullya Bianca, 5, voltar da aula.

É início de tarde. A menina estuda não muito longe dali, mas precisa ir e voltar de ônibus escolar, todos os dias. A espera, quando vai e quando retorna, é à beira da estrada de chão batido.

Na época em que a chuva desaparece, a rotina vira um suplício. Jullya tem crises de asma e o poeirão na DF-326, na Fercal, região administrativa do Distrito Federal encravada entre Brasília e Sobradinho, agrava enormemente a situação.

“AS CRIANÇAS DAQUI ANDAM DOENTES. A JULLYA FICA DOENTE DIRETO, TEM DOR DE CABEÇA. A POEIRA ESTÁ AFETANDO MUITO ELA. QUANDO CHEGA EM CASA, O CABELO É SÓ POEIRA”, DIZ A MÃE, EM TOM DE LAMENTO.

 

 

As nuvens de poeira deveriam ser um problema do passado na vida das famílias que vivem na região. Em meados de 2021, os moradores ouviram a promessa de que aquele pedaço de pista estaria asfaltado em um ano. Não foi. A estrada pavimentada existe só no papel.

Um contrato foi celebrado para a realização da obra, com verbas federais da Codevasf, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, estatal federal que nos últimos anos virou destino preferencial de emendas parlamentares, incluindo as do famigerado orçamento secreto.

Previsto inicialmente para ser entregue em julho de 2022, o trabalho de asfaltamento até começou, mas parou pouco depois. O contrato foi prorrogado mais de uma vez, e o máximo que a empreiteira contratada fez foi jogar uma camada de brita sobre a pista. Jullya, a filha de Márcia, segue sob a poeira – e sofrendo com as crises respiratórias.

O esquecimento e a indiferença não são exclusividade daquele trecho. Em outras partes do país, obras em estradas que deveriam ter sido pavimentadas com verbas da Codevasf seguem igualmente paradas, sem qualquer satisfação aos brasileiros que dependem delas para ter uma vida melhor.

Durante três meses, o Metrópoles analisou algumas centenas de páginas de documentos e percorreu mais de 1,8 mil quilômetros de estradas para conferir de perto essa triste realidade, em que contratos parecem não ter fim e recursos públicos se esvaem, aos milhões.

 

PEQUENAS E
GRANDES TRAGÉDIAS

O trecho da DF-326 que deveria estar pavimentado é parte de um pacote de obras previsto em um contrato com valor inicial de R$ 7,9 milhões assinado pela Codevasf em 2021. O plano era asfaltar estradas rurais por onde trafegam ônibus escolares que atendem comunidades como aquela onde vive a família de Jullya, a menina do início desta reportagem. Placas chegaram a ser instaladas ao longo da pista anunciando a data para a conclusão do serviço, que nunca foi entregue.

CRIANÇAS DA REGIÃO DO LOBEIRAL, A CERCA DE 30 QUILÔMETROS DO CENTRO DE BRASÍLIA: SAÚDE AFETADA PELA POEIRA. FOTO: HUGO BARRETO/METRÓPOLES

Para além dos problemas de saúde causados pela exposição à poeira, o trecho é também marcado pela tragédia. Em maio deste ano, o trabalhador rural Antônio Nogueira da Silva, 48 anos, morreu em um acidente na via, perto da comunidade Lobeiral, onde morava. Familiares contam que a moto que ele conduzia derrapou no cascalho. Na queda, Antônio teve traumatismo craniano. Ele deixou a mulher, Maria da Graça Conceição, e dois filhos. “A gente se sente sem rumo”, lamenta a viúva. “Quanto a ele, não podemos fazer mais nada, mas nós que ainda estamos aqui precisamos dessa estrada. Nossos governantes precisam parar de conversa e cumprir o que prometem”, emenda.

O acidente aconteceu justamente em uma parte da estrada que, pela previsão inicial da Codevasf, já deveria estar pavimentada.

Metrópoles esteve no local três vezes. A primeira foi no dia 7 de junho, de manhã e à tarde. Não havia um operário sequer trabalhando na obra. As placas antigas instaladas quando o serviço começou a ser feito davam a medida do atraso: a pavimentação deveria ter sido concluída um ano antes, em julho de 2022.

A visita dos repórteres – e as seguidas perguntas à Codevasf sobre os motivos da interrupção da obra – parecem ter surtido efeito. Uma semana depois, o cenário havia mudado: as máquinas voltaram à pista e outras placas foram instaladas, com uma nova data para a conclusão da obra: fim de 2023.

Nada, porém, que fosse duradouro. Quarenta e sete dias depois, a reportagem voltou para ver o que havia sido feito. Estava tudo parado novamente. Apenas uma camada de brita fora despejada e as máquinas já não estavam mais na pista. O único sinal de que ali deveria existir uma obra em andamento era um caminhão-pipa molhando o chão batido.

HUGO BARRETO/METRÓPOLES

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EM 7 DE JUNHO, DUAS PLACAS ÀS MARGENS DA DF-326 EXIBIAM INFORMAÇÕES SOBRE A OBRA. O CUSTO DO SERVIÇO INFORMADO NO PAINEL ERA DE R$ 7,9 MILHÕES E A PREVISÃO DE CONCLUSÃO, 20 DE JULHO

HUGO BARRETO/METRÓPOLES

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EM 14 DE JUNHO, UMA SEMANA DEPOIS DA PRIMEIRA VISITA DA REPORTAGEM, AS PLACAS ANTIGAS TINHAM SIDO REMOVIDAS. UMA PAINEL NOVO, IMPROVISADO, TRAZIA OUTRA DATA PARA CONCLUSÃO DO SERVIÇO: 5 DE DEZEMBRO

HUGO BARRETO/METRÓPOLES

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EM 24 DE JULHO, O METRÓPOLES VOLTOU À REGIÃO. A OBRA, QUE FOI RETOMADA LOGO APÓS A PRIMEIRA VEZ EM QUE A REPORTAGEM ESTEVE NO LOCAL E CONVERSOU COM MORADORES, ESTAVA NOVAMENTE PARALISADA

A Codevasf admite que o trabalho foi paralisado, mas atribui a responsabilidade à empreiteira contratada, que não teria apresentado a comprovação dos serviços já executados, uma exigência para o prosseguimento do trabalho.

EM ALAGOAS,
DOIS MUNDOS

A 1.657 quilômetros de Brasília, em São Sebastião, município de pouco mais de 30 mil habitantes no interior de Alagoas, o quadro se repete: contratos milionários da Codevasf para pavimentação de estradas de terra, expectativas frustradas da população e nenhuma – absolutamente nenhuma – obra pronta.

 

EM ALAGOAS, O RETRATO DO DESCASO: ESTRADA QUE SERVE A BRASILEIROS COMUNS AGUARDAM PAVIMENTAÇÃO, ENQUANTO AS QUE LEVAM À FAZENDA DE ARTHUR LIRA, PERTO DALI, FORAM ASFALTADAS. FOTO: NATÁLIA PORTINARI/METRÓPOLES

Embora a companhia federal tenha acertado um polpudo contrato para pavimentar estradas vicinais que levam a quatro povoados, não há nenhum sinal de que os projetos sairão do papel tão cedo.

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