15/05/20
Por Machado Freire
blogfolhadosertao.com
O sapateiro Bano “pendura” as alpercatas. Trabalhou na roça, conviveu com operários comunistas, no Recife, e confeccionou o sapato Luiz XV para mulheres da alta sociedade de Salgueiro.
Noventa anos de vida- completados hoje, 15 de maio, e mais de 75 anos de atividades dedicados à vida de sapateiro -, uma profissão que não resistiu ao processo de modernização no setor de calçados.
“A gente ganhava a vida fazendo chinelos e alpercatas de couro e pneu, mas as encomendas caíram muito com a chegada das sandálias japonesas”, conta o sapateiro Urbano Amâncio Pereira. Sua família acha que chegou a hora e ele deve tratar da saúde porque sua idade está bem avançada, apesar se ser dono de uma “memoria de elefante”.
Conhecido por Bano, desde menino, o artista começou a trabalhar na roça aos 15 anos anos de idade, ao lado do pai Amâncio Pereira, que deixou a agricultura de subsistência para ser funcionário do industrial e coronel da Guarda Nacional, Veremundo Soares, em uma usina de beneficiamento de Caroá.
Também ao afastar-se da enxada ( seguindo o exemplo do pai), Bano passou a atuar como aprendiz nas oficinas de sapataria de velhos conhecidos da cidade, como Aderbal Conserva ( que mudou a profissão para fotógrafo profissional), Pedro José Rosado, Afonso Ferreira (Afonsinho) e Antonio Brito na estreita rua Epitácio Alencar, uma espécie de “polo das sapatarias” com espaço para a feira do fumo, que era realizada aos sábados.
O aprendiz também foi bem recebido/orientado pelo famoso sapateiro profissional Antonio Carlos Freire, com quem aprendeu a confeccionar o sapato feminino Luiz XV, muito bem aceito pelas mulheres da alta sociedade. “Era a grande novidade da época na sapataria do Curtume Nossa Senhora de Fátima, de propriedade do empresário Antonio Soares”, comenta.
“Eu pensava que tinha aprendido a arte de sapateiro”, diz o filho caçula de uma prole de nove irmãos que com pouco mais de vinte anos de idade rumou para o Recife em uma carroçaria de um caminhão do Estado, dirigido por seu irmão Luís Amâncio, que já morava na Capital.
“Deixei de ser aprendiz e trabalhava com vinte colegas na saparia de dona Maria Almeida, uma patroa muito boa, mas eu não sabia que estava vivendo com comunistas, inclusive o presidente do sindicato dos sapateiros”, conta ao confessar não ter sofrido nenhum problema de natureza política por causa disto.
Depois de trabalhar em outras sapatarias da Capital e se considerar um “profissional preparado”, Bano buscou independência passando a confeccionar calçados por conta própria. “Eu vendia as peças a antigos e novos clientes que visitavam as oficinas onde trabalhei desde o começo da década de 1950” , lembra o operário que não imaginava que encerraria sua “escalada” pelo mundo na cidade de Araripina, onde passou dez meses por sugestão do seu irmão, João Amâncio. “Não deu certo mesmo e eu tive que sair de lá antes de completar um ano”, confessa.
“Voltei para Salgueiro e procurei me estabelecer com minha oficina, enquanto cuidava de “levantar” minha casa, para deixar de pagar aluguel, diz Bano ao lembrar que foi sacaneado por um individuo desconhecido que lhe pediu um “pernoite” em sua oficina que ficava no beco de Chica Calixta. “No dia seguinte, quando cheguei para trabalhar, encontrei a oficina “limpa” porque o sujeito tinha levado todas as minhas ferramentas e eu tive que começar tudo de novo, me valendo de velhos amigos , até que me recuperei e terminei a minha casa”, suspira angustiado.
O homem mais feliz do mundo ! Tempos depois que chegou ao Recife, Bano encontrou-se com a conterrânea Rosemira, que era viúva. Eles iniciaram uma amizade que hoje passa de 60 anos. Desse “ajuntamento” nasceram dois filhos no Recife: Beto da Compesa e a professora Aurênia. Já em Salgueiro nasceram Aurinete e Adalberto que no dia 16 de junho do ano passado assistiram o enlace matrimonial de seus pais na Igreja Católica, em Salgueiro.
Lúcido, consciente e amante da vida, o sapateiro mais antigo da história do Sertão não é mais aquele caçador nem pescador (esportes que ele mais gosta), mas se considera o homem mais feliz do mundo. “Trato da minha saúde, conto com o apoio da minha família e estou muito feliz”, confessa com brilho nos olhos marejados de satisfação.
Em janeiro deste ano, a pedido do filho Beto da Compesa, (pedido acatado pela família), Bano parou suas atividades de uma vez e passou a se dedicar exclusivamente à família: a mulher, quatro filhos, 12 netos e 11 bisnetos.
Devido à pandemia do novo coronavírus, o sapateiro vai receber o abraço dos familiares (de forma reduzida) amanhã (sabado) para cortar o bolo na cada da filha Aurênia.
Conhecim muita gente na minha vida, mas no caso de Bano é um caso especial, pois ele não parece ter chegado aos 90 anos de idade depois de tanta luta.
Trata-se de um guerreiro de verdade.