27/08/23
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Por Ricardo Leitão *
Ao contrário da Argentina e do Chile, cujas populações foram vítimas de ditaduras militares que exilaram, torturaram e assassinaram milhares de opositores, o Brasil preferiu contemporizar, após a redemocratização em 1985, com as feridas abertas pelo arbítrio. Nos dois países vizinhos houve prisões e julgamentos de ditadores, em obrigatório e inescapável ajuste de contas com o passado. Foi profunda a dor coletiva, no entanto minorada pela esperança de que, dali em diante, se abria alguma porta para o futuro.
No Brasil, os torturadores da ditadura imposta ao País em 1964 foram esquecidos, tornaram-se carinhosos vovôs e vovós ou permanecem protegidos por uma generosa interpretação da Lei da Anistia. Entre os milhares de agentes da repressão política, somando civis e militares, apenas um foi julgado e condenado: o major do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório operador nos porões de suplício em São Paulo.
O ex-presidente Jair Bolsonaro se tornou uma das mais bem sucedidas crias dessa amnésia histórica, cultivada em nome da “pacificação nacional”. Bolsonaro sempre defendeu a tortura e os torturadores e nunca escondeu isso de seus eleitores. Alcançou o clímax quando, deputado federal, votou a favor do impeachment da Presidente Dilma Roussef, dedicando seu voto – proferido no plenário do Congresso – à memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Portanto não houve surpresas quando o ex-presidente montou o seu desgoverno e escalou, para postos-chaves no Palácio do Planalto e comandos das Forças Armadas, militares da direita, capazes de acompanhá-lo na aventura golpista. O plano fracassou. No entanto, paradoxalmente, pode ter servido para o fortalecimento da democracia se o Brasil souber tratar os militares golpistas (que são minoria) como cidadãos sujeitos às leis a que estão sujeitos todos os demais cidadãos.
Oficiais graduados do Exército, da Marinha e da Aeronáutica foram envolvidos por Bolsonaro na articulação golpista. Alguns reagiram e entregaram os cargos; outros permaneceram em silêncio; outros olharam de lado quando o ex-presidente, aos berros, colocou em dúvida a realização de eleições, nos desfiles do 7 de Setembro em 2021 e 2022. Outros, por fim, não reagiram quando militantes bolsonaristas, desmoralizando suas autoridades, montaram acampamentos golpistas nos portões de seus quartéis. De um desses acampamentos, em Brasília, partiu a multidão que vandalizou o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, em 8 de janeiro.
É nesse contexto, tenso e histórico, que se apresenta mais uma oportunidade de acerto de contas, não com o passado pré-redemocratização, provavelmente já tragado pela passagem de quatro décadas, e sim com a tragédia que as investigações policiais e parlamentares agora desnudam para o País. Não com o Exército, a Marinha e a Aeronáutica como necessárias e constitucionais instituições de Estado, mas sim com oficiais de cada uma dessas Forças que individualmente mergulharam no pântano golpista de Bolsonaro. Nele reluzem joias contrabandeadas e se perfila uma quadrilha fardada.
Será uma purgação, contudo há momentos em que as democracias precisam ser purgadas para sobreviver. Um desses momentos é agora. Como admitir que o ex-Presidente tenha recebido, para um café da manhã de duas horas, em sua residência oficial, o hacker Walter Delgatti, condenado a 20 anos de prisão, e com ele tratar de sabotagem em urnas eletrônicas? E em seguida encaminhar Delgatti para um encontro com o então Ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Nogueira, que por sua vez apresentou o hacker a uma comissão de dez oficiais que analisavam pontos frágeis das urnas eletrônicas? E que Delgatti tenha visitado o Ministério da Defesa por mais quatro vezes, sempre clandestino, e colaborado na redação do relatório dos dez oficiais?
Para a saúde e solidez da democracia tudo isso deve ser detalhadamente esclarecido. O general Paulo Sérgio Nogueira, ex-comandante do Exército e ex-ministro da Defesa na gestão de Jair Bolsonaro, deve um esclarecimento aos brasileiros sobre as visitações clandestinas de Delgatti em um dos prédios mais seguros e vigiados do Governo Federal.
Aguarda-se também o que têm a dizer os comandantes dos quartéis cercados pelos militares golpistas; os comandantes de polícias militares (como os do Distrito Federal) que permaneceram omissos diante das depredações das sedes dos Três Poderes; os generais e oficiais lotados no Palácio do Planalto como assessores do ex-presidente, desde quando Bolsonaro começou a articular o golpe.
Tão ampla e profunda purgação demandará cuidadosa e permanente mensuração da temperatura coletiva e individual. O profissionalismo das Forças Armadas brasileiras é uma plantinha tenra, que Bolsonaro intoxicou com seu veneno golpista. Sem recuar do dever de investigar, julgar e punir os militares que negaram seus compromissos constitucionais, mostra-se absolutamente essencial que as investigações avancem para evitar que crimes individuais de tamanha gravidade sejam inocentados.
O Brasil precisa de forças armadas profissionais, bem equipadas e bem remuneradas, como precisa de operários, de professores, de médicos, de agentes de segurança e cientistas. Todos são cidadãos, fardados ou não. Todos iguais perante a lei.
* Por Ricardo Leitão é Jornalista