05/06/23
Por :Isabel Dourado – Correio Braziliense
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Bruno Pereira junto com Ivan Soler no Rio Uatumã (Crédito: Ivan Soler/DIvulgação) |
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“O Bruno era muito mais que o Vale do Javari”. É dessa forma que Keit Pinheiro descreve o ex-companheiro com quem compartilhou a vida de casal por oito anos. Um ano após a morte violenta do indigenista Bruno da Cunha Araújo Pereira no Vale do Javari, o Correio reconstitui a trajetória de vida dele. O jornal ouviu pessoas próximas, amigos e conhecidos para descrever quem era o brasileiro que se tornou um ícone da causa indigenista. Os relatos indicam uma vida marcada por amizades, descobertas e companheirismo que ele despertava nas pessoas. O Correio procurou familiares de Bruno Pereira, bem como a viúva dele, Beatriz Matos. Eles não quiseram dar entrevista.
Sonhador, destemido, brincalhão, alegre, humilde e justo são algumas das qualidades lembradas por amigos que conviveram com Bruno e compartilhar da alegria contagiante que ele transmitia por onde passava. Aos 22 anos, o jovem nascido no Recife desistiu da graduação em jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco. Já naquele ano, em 2002, Bruno manifestava interesse em desvendar os mistérios da Floresta Amazônica e trabalhar com povos indígenas.
Alto e corpulento, os amigos chamavam Bruno de “Brunão” e “grandão”. Contam que ele tinha espírito aventureiro, com interesse por experiências marcantes. Mas também gostava de momentos marcados pela simplicidade, como pescar com os amigos, participar de uma boa roda de conversa e apreciar um caldo de peixe. Bruno Pereira era tido como uma pessoa encantadora. Por onde passava, fazia amizades. A presença dele era sempre disputada nos almoços de domingo. “Aonde o Bruno chegava, era aquela festa. Ele dava aquela gargalhada dele gostosa; todo mundo ficava encantado por ele. Ele tinha muitas histórias apesar de ser tão novo na época,” relembra Keit Pinheiro.
Os anos em Balbina
Em janeiro de 2004, aos 24 anos, Bruno chegou à cidade amazonense de Presidente Figueiredo, a 126 quilômetros de Manaus. Pretendia trabalhar com reflorestamento nas áreas degradadas pela usina hidrelétrica de Balbina, inaugurada em 1983 no rio Amazonas. O alagamento provocado pela construção da usina provocou grave impacto socioambiental na região.
O trabalho de reflorestar as áreas degradadas da região aproximou ainda mais Bruno da natureza e dos povos da floresta. Ivan Soler, funcionário da Funai, conheceu Bruno em 2006. Os dois fizeram um curso sobre coleta e beneficiamento de sementes florestais nativas. Depois disso, a sintonia e a amizade foram crescendo. Os dois se tornaram parceiros de trilhas, escalavam árvores juntos e contemplavam a beleza da Amazônia. “Depois das primeiras aventuras que vivemos juntos naquelas matas lindas do rio Uatumã, eu passei a frequentar a casa dele, levando outros amigos para escalar árvores. Ele era brincalhão, transmitia confiança, e uma contagiante alegria pela vida. Isso é cativante numa pessoa”, lembra Ivan.
Assim que chegou a Balbina, Bruno não perdeu tempo. Logo se aproximou dos moradores e criou relações de amizade. Extrovertido e comunicativo, aprofundou laços a ponto de criar quase uma relação familiar com a inspetora educacional Rosa Maria Xavier. “Ele amava esse lugar”, conta a moradora de Balbina. e mesmo sendo jovem já tinha um espírito de liderança.
“A gente se deu muito bem depois que a gente passou a se conhecer. Parecia que minha família estava conectada com ele. Os mesmos pensamentos que ele tinha sobre a nossa Amazônia, sobre os índios nós tínhamos também. Era uma pessoa fora de série. Ele era grandão, tinha uma risadona. Com o pessoal daqui, ele se envolveu logo. Parece que ele não se encontrava mais em outro lugar do mundo se não fosse aqui”, conta Rosa Maria, testemunhando o espírito de liderança que marcava a personalidade do aprendiz de indigenista.
Os almoços de final de semana na casa da Rosa eram servidos com peixe assado, caldo e cerveja gelada. O clima vinha repleto de boas conversas, humor alegre e contagiante. Rosa Maria lembra das vezes em que Bruno chegava perto dela e pedia para ela preparar um caldo de peixe do jeito que só ela sabia fazer. “A gente tem uma casinha de fogão de lenha aqui atrás, do lado e a gente chamava ele. Ele dormia aqui em casa, era uma coisa muito bacana, e ele já trazia o peixe para eu fazer o caldo para ele, porque ele gostava muito”, descreve a amiga.
“Quando chegava, aqui falava: ‘Comadre, faz um caldo para mim’. E eu fazia”, conta Rosa, sorrindo. Emocionada e saudosa de Bruno, ela relata que ela e o amigo gostavam de conversar sobre comida. “Eu sou daqui dessa região e gosto muito de cozinhar, e ele gostava muito de peixe. Ele gostava de sardinha assada, e caldo, ele amava. Tudo pra ele tinha que ter peixe no meio”, detalha. “Ele sempre comprava tucunaré e trazia para eu fazer. O tempo que a gente conviveu com ele foi muito bom”, diz.
Indigenista Bruno Pereira e a primeira filha Maria Luiza em 2005 (Crédito: Keit Pinheiro) |
A chegada de Maria Luísa
Foi em Balbina, em 2004, que Bruno conheceu a primeira companheira, Keit. Aos 24 anos, ele já compartilhava o desejo de ser um porta-voz dos indígenas. Após um ano da união do casal, Bruno recebeu a notícia de que seria pai de Maria Luísa. Antes de a criança vir ao mundo, ele começou a nutrir um amor profundo pela filha. Escreveu uma carta sobre as emoções que estava sentido e as expectativas da paternidade. “Bruno chorou muito quando descobriu que ia ser pai. Ele fez uma carta para o filho, quando ele escreveu a gente não sabia o sexo do bebê. Ele ficou muito emocionado”, conta Keit.
A admiração que tinha pela natureza e pela Amazônia foi desde cedo passada para a filha. “O Bruno pegava a Maria e saía com ela na rua. Quando ela tinha dois anos de idade levava ela para o mato e já mostrava as árvores para ela, que fruto que ela dava. Ele sempre ensinou para ela esse amor pela natureza pelo meio ambiente e ela é muito consciente disso. Eles eram apaixonados um pelo outro”, conta a mãe de Maria Luísa.
Reconhecido como pai carinhoso e amoroso, Bruno se preocupava, segundo os amigos, com o futuro da filha. Mas desejava que ela também se aventurasse na vida. Ivan Soler lembra a vez que flagrou o amigo mostrando os equipamentos de escalagem para a pequena. “Era um pai fora da curva, protetor, mas incentivava a filha a experimentar a vida. Nas nossas conversas, fazia planos para incentivá-la a se aventurar também”, conta.
“Para ele [a filha] era a vida dele, ele dava muito amor para ela, tinha muito cuidado e se preocupava demais com o futuro dela”, conta Rosa.
Nos dias livres Bruno gostava de pescar e passar o tempo com a família e com os amigos na prainha de Balbina. Keit relembra os momentos. “A gente ia para lá no final de semana com amigos ou só nós dois com a Maria. Às vezes a gente recebia os amigos em casa, a gente fazia uma galinha caipira que ele gostava, gostava de peixe. Ele pescava com os amigos, era espetacular”, descreve.
Esta reportagem faz parte da série Para além do Vale do Javari: quem foi Bruno Pereira. No aniversário da morte do indigenista Bruno Pereira, o Correio Braziliense reconstitui a trajetória do apaixonado pelos povos originários que acabou tornando-se um mártir da causa indígena.